Leopoldo Palmeira

Enquanto eu passava pela rodovia Presidente Dutra na altura de Piraí a caminho do Encontro do Guia CNC recebi o telefonema da minha irmã dizendo que na madrugada de sexta para sábado faleceu meu tio Leopoldo, um grande pedreiro e o mais próximo dos 13 irmãos da minha mãe. Pode parecer estranho citar isso aqui mas o faço porque o ‘titio’ me mostrou que eu era capaz, ensinou e inspirou muito no que diz respeito a trabalhos manuais e técnicos.

Meus pais sempre tiveram compulsão por obras e construções então estávamos sempre nos mudando, reformando e construindo casas e apartamentos. Então nesta época, dos meus 10 aos 15 anos muitos e muitos dias de tarde depois de voltar da escola e nas férias ao invés de ficar nos videogames eu ficava na obra junto dele e a peãozada.

Ele era grandalhão, com uma grande barriga de cerveja, poucos cabelos e uma longa barba e até hoje quando eu vejo o rótulo do Velho Barreiro me lembro dele. Nas obras ele sempre se saiu como um líder nato, era um cavalo, tinha uma certa imponência pela força física, voz grave e pelo ritmo alucinado de trabalho, coisa de admirar mesmo. Uma vez ele apostou uma grana com o meu pai que sozinho assentaria 1000 tijolos em um dia contando somente com a ajuda do Zé Pezão virando massa. Ganhou mas só depois de pressionar muito o Zé pra virar massa mais rápido.

Ele sempre trabalhava por empreitada e nunca ficava longe da sua esposa, a ‘Zaré’ no fim de semana em Piraí, por isso toda sexta-feira era tensa e todo mundo que estava atrapalhando era chamado de ‘gambá’, ‘imundície’ (que ele falava como ‘imundiça’) ou então recebia um xapisco de cimento como aviso por que ele estava ‘abafado de costura’, um verdadeiro ‘catiço’. Um dia de trabalho passava voando perto dele pois falava besteira, inventava apelidos, imitava e sacaneava os vizinhos, clientes, fornecedores brincando com todo mundo o tempo todo mas sempre puxando para o ritmo de trabalho dele.

Ele me colocava para fazer coisas mais leves como passar e instalar fios de eletricidade, carregar material aos poucos e organizar ferramentas, carrinho de mão de concreto, cortar arame para fazer armação de vigas e lajes, colocar tábua corrida alucinadamente (acho que colocamos mais de 200m2), retirar peças aproveitáveis ou reclicáveis antes de demolir, serrar madeira. Me ensinou a instalar terminais, tomadas, “three ways”, disjuntores e tudo o mais com a eletricidade ligada. Depois que eu fiquei reclamando que tomava choque, ele pegou numa fase e me segurou pelo braço me deu um baita choque e gritou: viu, voce não morreu gambá, isso não é nada! Cê ta bozin! Vambora, pega esse lado aí que eu quero terminar este andar hoje!

Ao contrário dos almoços de escritório onde reclamamos de todo o conforto, uma das melhores impressões era a parada sagrada do almoço. Todo mundo com a sua marmita inclusive eu, com uma silenciosa satisfação, uma espécie de comunhão, comendo tudo, estalando a boca e lambendo os beiços depois de gastar tanta energia. Me lembro da forte impressão da primeira vez que entrei em uma favela que era bem pobre na época. Todos os dias depois deste almoço pacífico, o titio e alguns desalmados iam tomar uma cachaça e me levavam junto em uma espécie de botequim la no Boogie Woogie mas que tinham umas meninas que ele pegava pelo braço com toda a grosseria e as colocava para conversarem comigo: Vem falar com ele! É meu sobrinho. Ele te quer, só tá com vergonha. Não lembro de muito disso, só que eu não era alto o bastante para sentar e alcançar o balcão, então via o copo de cachaça por baixo e tinha que levantar a mão pra pegar e que eu era o ultimo a terminar a minha cachaça pois meu paladar ainda não estava desenvolvido o bastante para virar de uma vez. As vezes ele me dava um guaraná Tobby.

Não sei o que se passava pela cabeça dele ao tratar comigo pois eu era um menino raquítico e um tanto tímido e distante do mundo dele, brincava de Lego e chorava copiosamente por qualquer nota abaixo de 8,0. Não sei se ele queria ou tinha pretensão de ensinar alguma coisa mas sei que aprendi bastante coisas como trabalho em equipe, dignidade e orgulho em qualquer tipo de trabalho, concentração nas atividades manuais, usar serrote e formão, que para produzir muito e ser bom no serviço você não precisa e não deve ser mau-humorado ou babaca, ensinou ainda a fazer encaixes de madeira, xingar os outros sem parecer ofensivo, sacrifício e dureza que os trabalhadores tem que suportar. O mais importante de tudo foi ver que existe uma relação de moral mesmo que inconsciente que se cria quando um trabalho ou serviço bem feito é realizado. Com o tio isso dava a ele uma espécie de liberdade e moral para tratar o dono da obra pior que o servente e o servente melhor do que o presidente da empresa como o dia em que ele sem dor na consciência esvaziou uma jerica de concreto na cabeça de um engenheiro que tirou a garrafa de cachaça dele.

Faz mais de 10 anos que eu não o via. Ele andou bastante doente do coração e pressão em parte por causa do álcool que nunca largou assim como o pai dele, meu avô. Só me disseram que estava muito grisalho e que pelas fotos achou a minha esposa linda, e que se eu desse mole, ele ia “arrastar” ela para Piraí. No ultimo mês ele acordou do coma e enquanto as pessoas rezavam e davam graças, suas primeiras palavras com o bom humor de sempre foram: ôoo, eu quero é uma gelada! Adiei a visita muitas vezes a ponto do esquecimento. Sempre aparece um churrasco, freela, aniversário de alguém, jogo de futebol ou o raio que o parta que a gente deixa estas visitas para lá.

Ele pode desaparecer, mas um pouco dele vive nas dezenas e dezenas de casas e prédios que ele construiu e em mim, em cada ferramente empunhada e nos trabalhos manuais que eu faço.

Construtor incansável
Fanfarrão nato
Amigo

Descanse em paz.

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